O casamento precoce ou infantil é uma prática que está fortemente ligada às tradições culturais de muitas etnias do país, razão pela qual há resistência da parte dos mais radicais, sobretudo nas zonas rurais, particularmente na Região de Tombali, Setor de Catió.

Naquela localidade, segundo estudos de 2018 a 2022, quase 40 por cento de meninas menores de 18 são submetidas ao casamento, uma situação que tem refletido negativamente no crescimento físico dessas crianças, além de contribuir no retrocesso dos seus estudos – o abandono escolar.

O casamento forçado é uma prática secular, cujos protagonistas são chefes de tabancas, responsáveis de famílias, comités e régulos.

Em Catió, por exemplo, muitas meninas já experimentaram essa aventura de casar com homens maiores de 40 anos de idade, obrigando-as a viver num autêntico “cativeiro”, partilhando o mesmo teto com cônjuges que não faziam parte dos seus sonhos, passando a viver num ambiente de aflição e de medo.

O casamento é feito em diferentes momentos, dependendo de condições da família ou do marido. Antes da cerimónia, o cônjuge é obrigado a pagar um certo valor monetário e bens materiais.

 Criação do centro de acolhimento

O Nô Pintcha falou com o pastor Emanuel Cá, responsável de um centro de acolhimento de meninas vítimas de casamento forçado e precoce, em Catió, que na sua explicação, a ideia de criação dessa casa surgiu em 2005, quando uma menina de menor de idade foi obrigada a se casar sem o seu consentimento.

Segundo o pastor, aquela menor foi tirada de uma aldeia para outra, então como não concordava com o marido que lhe foi dado pelo pai, tentou fugir, mas por infelicidade acabou por morrer num naufrágio.

Depois de tomar conhecimento do ocorrido, acionou logo mecanismo para saber da origem do problema que viria a culminar a morte da menina e, posteriormente, denunciou o caso junto das autoridades policiais, judiciais e administrativas, no sentido de essas tomarem as providências necessárias.

“Em consequência, o pai da vítima foi traduzido à justiça e condenado a prisão, isso tudo era no sentido de desencorajar essa prática”, explicou o pastor.

A partir daí, outras meninas também vítimas dessas práticas começaram a procurar-lhe. “Comecei com uma pessoa e mais tarde o número subiu para 10 e hoje já conto com 33 meninas fugitivas”.

Por outro lado, o pastor Emanuel lamenta a falta de apoio da parte do Governo e das organizações que trabalham em defesa dos direitos das crianças, destacando o apoio do Projeto África Services, que trabalha ligada à Igreja Evangélica. Na sua opinião, a dimensão que o centro atingiu atualmente, precisa de ajuda de outros parceiros para a sustentabilidade do cento.

De acordo com o pastor, a situação de falta de apoio leva as crianças a dormir em condições um pouco “desumanas”, porque não tem espaço suficiente para acomodar todas elas. “Nesse momento amontamos tendas na sala e no corredor, sob pena de maioria delas ficar sem espaço para dormir”.

Disse, no entanto, que tem conseguido o assegurar centro, graças aos apoios de pessoas de boa vontade e de trabalho das próprias vítimas. “Mas isso não é suficiente para resolver as necessidades, porque essas crianças precisam de ir a escola, saúde, sem contar com outras situações imprevisíveis.

“Neste preciso momento que estamos a falar, uma dessas crianças está internada no hospital, e quem vai assumir os encargos, certamente, sou eu. Portanto, é difícil suportar esse fardo, de cuidar delas e, ao mesmo tempo, da minha própria família, mas como é o caminho que Deus escolheu para mim, tenho que seguir em frente”, disse.

Como alternativa, acrescentou, decidi criar um grupo de lavor, através do qual angariamos dinheiro que usamos no processe de matricula e de compra de materiais didáticas. Além de isso, dedicam-se também à horticultura e outras atividades geradoras de rendimento.

Acompanhamento

Emanuel Cá disse que quando uma dessas meninas atingir a idade de escolher um parceiro, dá-lhe toda a liberdade de escolha, mas sempre respeitando os valores e princípios, morais sociais, culturais e religiosas.

“Depois de apresentação de namorado ou pretendente, logo de seguida informamos aos pais para que a questão seja tratada a nível familiar, porque a preocupação de maioria das pessoas nas zonas rurais é ver suas filhas ter marido, portanto, foi assim que algumas delas saíram do centro. Não tenho número exato neste momento, mas estão à volta de 40 meninas ”, informou.

Segundo o pastor, mesmo que essas crianças não estejam sob a sua responsabilidade, mas continua a segui-las, por via telefone ou através de visitas de rotinas, para que elas não se desviem do “caminho”.

Ameaças de morte

Sobre este assunto, Emanuel Cá denunciou que foi várias vezes alvo de ameaças de morte, de calúnias e difamações por parte de famílias de vítimas. “Foram várias chamadas telefónicas de ameaças contra a minha integridade física, caso continuasse acolher meninas. Mas não temo essas ameaças, porque é o caminho que escolhi para minha obra religiosa, então estou a vontade”.

Disse que algumas pessoas ligam-lhe a confessar que estão de acordo com o apoio que está a dar a essas crianças, porque já viram os resultados, mas só que não têm coragem de manifestar publicamente, sob pena de serem perseguidas pelos radicais.

“Para criar um ambiente da paz e bom relacionamento entre as vítimas e suas famílias, eu pessoalmente faço questão de deslocar até as aldeias, a fim de persuadir os familiares a aceitar a vítima como membro da família, e caso concordarem, no período das férias a menina regressa à aldeia para ajudar no trabalho”, disse.

Perante as inúmeras ameaças que já recebeu, mas nunca foi garantido um corpo de segurança, facto que lhe leva a dizer que a única segurança que tem até ao momento é Deus.

“Estou preparado para tudo que der e vier, mas nunca vou vacilar da minha missão como servo de Deus. Graças a este centro, o Setor de Komo beneficiou de antena de uma das redes da telecomunicação móvel, a pedido de uma menina vítima de casamento forçado”, destacou.

Jornal Nô Pintcha